Vivemos, já há algum tempo, um filme repetido: de tempos em tempos, o presidente Jair Bolsonaro insere na política nacional algum tema controverso, seja por via retórica ou por um ato protocolar (o último surpreendeu a todos pelo ineditismo, com a graça concedida ao Daniel Silveira, que sequer fora condenado, uma vez que ainda havia margem para recurso). Ato contínuo, o país entra em polvorosa: todo mundo discute o risco de um golpe de Estado, alguns comentários se restringem a apontar a tática bolsonariana de “esticar a corda”, outros reforçam que tudo isso não passa de estratégia de cortina de fumaça para encobrir algum escândalo do momento que envolva algum dos membros do clã Bolsonaro, isto é, o presidente e seus filhos.
A pergunta que se impõe é: qual o limite? Até onde o Bolsonaro pode ir? Até antes do 7 de setembro do ano passado, essa questão suscitava tremores em muita gente. Havia quem considerasse que o golpe era uma mera questão de tempo. Depois daquela ocasião, Bolsonaro parecia ter se contido um pouco em seus rompantes contra a institucionalidade, em especial após a sua reaproximação com o Centrão. Ali, houve inclusive um intermédio do ex-presidente Michel Temer para segurar os ímpetos golpistas. Como se vê, o limite imposto a Bolsonaro não veio da institucionalidade, mas sim da política. O que isso aponta?
Já é consenso que há uma crise de institucionalidade no país, instabilidade gerada no triênio 2013-2016 e tendo o processo de impeachment contra Dilma como marco fundamental. A lógica dos freios e contrapesos típica de nosso modelo democrático tem encontrado pouco flanco na realidade. Em sentido contrário, o que vemos é uma intervenção constante dos poderes nos espaços de outrem; o Legislativo procura encurralar o Executivo; o Judiciário legislando (e executando); e o Executivo inoperante, como não poderia ser diferente no quadro de um governo sem programa central, sem estratégia definida e sem organicidade política. Alguns entes seguem seu esforço administrativo à revelia das decisões políticas: é o caso, por exemplo, do Banco Central, que, por assim dizer, conquistou autonomia. E, embora algumas medidas de difícil consenso tenham sido aprovadas nesses anos (vide a Reforma da Previdência), não foi por liderança política do governo que isso aconteceu.
À parte esses três poderes, é possível situar uma instituição, que representa, em si, o Poder Executivo, mas que se sobressai a ele – e com Bolsonaro isso se tornou bem evidente. Trata-se, é claro, da Presidência da República. Este posto no qual Bolsonaro se sentou e, de maneira bufante e desordenada, sem nenhum tipo de traquejo político ou respeito aos protocolos, tem se mantido até hoje. Como explicar que, num país em que apenas três presidentes eleitos terminaram o mandato num espaço de 60 anos, Bolsonaro, com exígua legitimidade, seja também um dos poucos a conseguir alcançar tal feito? Só há uma razão a se supor: o fato de que a Presidência da República guarda, em si, uma estabilidade que é rara ao conjunto da institucionalidade nacional, seja antes ou depois da Constituição de 1988.
Um desavisado, no entanto, pensa exatamente o oposto: que o presidente no Brasil é um títere. Um sujeito que depende enfaticamente de certa boa vontade dos outros poderes para conseguir agir. Só que aí estamos indo muito além do que a posição de Chefe de Estado supõe. O exercício de governar é, sem dúvida, tarefa inglória no Brasil. Mas já foi demonstrado, mais de uma vez, que ocupar a cadeira de mandatário é o elemento fundamental para sustentar uma determinada hegemonia política. Os militares demonstraram isso durante a ditadura. Emitiam atos institucionais de acordo com suas conveniências. Outros simplesmente a deixaram escapulir das mãos. Temos, aqui, os casos de João Goulart e Dilma Rousseff, que, embora enfrentassem cenários de crise social, política e econômica nos seus governos, não fizeram muito para defender o posto que ocupavam, pelo contrário: sendo mais realistas que o rei, aceitaram, republicanamente, ritos que, muito distantes de quaisquer republicanismos, foram utilizados de maneira espúria para tirá-los da Presidência. Mesmo Collor confessou que lhe foi oferecida a proposta de fechar o Congresso, na crise que o levaria a ser afastado do poder. É possível que todos esses tivessem terminado o mandato, se fossem mais habilidosos (ou mais cínicos, como Bolsonaro)? Parece que sim. Mesmo Lula, no auge de sua maior crise (Mensalão), tinha um trunfo forte: seu vice-presidente, José Alencar, ocupava, simultaneamente, o Ministério da Defesa. Isso ligava diretamente todos os assuntos relacionados às Forças Armadas ao Planalto, sem o intermédio de um personagem responsável pela mediação nessa relação. Não é à toa que, naquela escalada golpista, o Congresso trabalhou sozinho, sem qualquer risco de quarteladas ou desrespeito à hierarquia (como, em ocasiões pontuais, se viu no golpe contra Dilma).
Talvez o único que tenha, de fato, sido confrontado muito acima de qualquer limite estabelecido pela institucionalidade ou mesmo pela ética, tenha sido Getúlio Vargas – que chegou à Presidência num ato de força e num ato de força foi tirado, na primeira ocasião, e, na segunda, chegou “nos braços do povo” e, com popularidade fragilizada diante das intensas pressões sofridas, agiu de forma capital justamente para retornar aos braços do povo que o elegera.
O que isso tudo quer dizer, afinal? Bom, não se pode afirmar que o Presidente no Brasil tem poderes imperiais, certamente; seu poder é limitado e sua capacidade de governança, facilmente contaminada pelas pressões advindas de outras frentes. Contudo, também não podemos negar que a blindagem oferecida pela natureza do cargo suplanta qualquer outra no país e que, sim, muito além de qualquer forma de expressão, o presidente só sai da presidência se quiser. Isso não inclui, naturalmente, o ciclo de encerramento de mandatos, embora esse protocolo tenha sido poucas vezes questionado – Vargas, Castelo Branco e FHC foram alguns que ficaram no poder além do tempo que se supunha que ficariam inicialmente. Mesmo Lula tinha francas condições de pleitear um terceiro mandato, num momento em que seus correspondentes faziam o mesmo na vizinhança latino-americana, e credenciado como estava pela aprovação popular recorde (aliás, os jovens talvez não se lembrem, mas a grande imprensa dava como certa essa articulação). Ao que parece, apesar do corporativismo de nossos políticos, o apetite pelo poder não é lá tão forte no Brasil. Ou pelo menos quando se trata do poder central. Há muitos Rasputins para poucos aptos a ser czar. Não surpreende. É muito melhor viver da mamata do que se tornar vidraça. Bolsonaro entendeu isso, mas agora é tarde — ele já é presidente, afinal.