Será a literatura essencial? Um pragmático questionaria, indignado e intolerante: essencial a quem ou a quê? E argumentaria: num país como o nosso, cheio de carências básicas, em que muita gente passa fome, em que há índices vergonhosos de analfabetismo e semi-analfabetismo, como admitir-se que literatura é essencial? Essenciais são alimentação, emprego, atendimento médico-hospitalar, educação e um pouco, pelo menos, de segurança. Em suma, essencial é reduzir a pobreza, a miséria e os sofrimentos da maioria da população, que não tem sequer como viver com o mínimo de dignidade. O resto vem depois. E, diante desse quadro, literatura é algo supérfluo, luxo e requinte da elite intelectualizada.
Diria a esse interlocutor pragmático que não me contraponho a seus argumentos. Considero-os, sob uma ótica imediatista, irrefutáveis. Mas o nosso país tem uma literatura que não foi construída por sua elite econômico-financeira ou social. O maior escritor brasileiro de todos os tempos – que transcendeu as fronteiras nacionais e é considerado, hoje, pela crítica estrangeira, um ficcionista genial – era um mulato pobre, de família obscura, que se afirmou exclusivamente à custa de seu talento e de sua vocação literária: Machado de Assis. Outro grande nome de nossa literatura, autor de romances, contos e crônicas que transpiram sátira e crítica social, de original criatividade, era um quase pária, alcoólatra, com internamentos constantes em hospitais psiquiátricos: Lima Barreto.
Um clássico de nossa literatura, ao lado de Machado de Assis, que foi Graciliano Ramos, sempre viveu de modestos empregos e de direitos autorais, e não escapou da prisão, durante a ditadura getulista, por cerca de um ano, sem qualquer acusação concreta, sob pretexto de professar idéias marxistas. Jorge Amado e Erico Veríssimo viveram de direitos autorais, pois já foram considerados, nas dimensões modestas de nosso mercado editorial, campeões de venda. Nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, era um eficiente burocrata. O fabuloso Guimarães Rosa, um diplomata.
Na realidade, a maioria de nossos escritores pertenceu ou pertence à classe média. A única exceção talvez tenha sido o poeta Augusto Frederico Schmidt, que era um empresário bem-sucedido. Sem falar em Paulo Coelho, que é um caso à parte: ficou riquíssimo com subliteratura de autoajuda.
Portanto, descarto as objeções do interlocutor pragmático e reitero a indagação sobre a essencialidade da literatura. Poderia responder com um lugar-comum: a literatura consolida e expande o idioma nacional. Mas não é somente isso. A literatura apreende, revela, eterniza o modo de ser de cada nação, os seus costumes, os seus valores, a sua cultura. Sua importância vai, no entanto, ainda muito além: ultrapassando os limites do espaço e do tempo, ela desvenda a psicologia e os sentimentos das pessoas (em forma de personagens), o que há de mais profundo e duradouro na alma humana. Percebemos com mais acuidade os enigmas e mistérios da vida através do conhecimento das obras literárias. As histórias fictícias nos ajudam a entender melhor as histórias da vida real.
Em meio às lembranças de romances, de contos, de livros de memórias, de biografias, de ensaios, há poemas ou simplesmente versos (“feridos de mortal beleza”) que se incorporam à nossa sensibilidade. Tenho memorizados trechos de poemas de Fernando Pessoa, de Bandeira, de Drummond, de Carlos Pena Filho, de Quintana, de Joaquim Cardozo, de Raul de Leoni . De muitos outros poetas, nacionais e estrangeiros. Relembro apenas este verso de Bandeira, que em certas ocasiões ressurge com força de mantra: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.
A literatura é uma “orgia perpétua”, em que mergulhamos para tornar suportável o peso da existência, como está na citação inicial do livro de Vargas Llosa sobre Flaubert e “Madame Bovary”. Por isso mesmo é que Llosa acredita na confissão de Oscar Wilde: “A morte de Lucien Rubempré (personagem do romance “As ilusões perdidas” de Balzac) é o grande drama da minha vida”.
Ivan Maciel de Andrade, jurista e membro da academia norte-rio-grandense de letras.