Ricardo Valentim
Professor Associado da UFRN
O bolsonarismo é frequentemente rotulado como a direita brasileira, mas essa generalização desconsidera as profundas diferenças ideológicas e práticas entre o movimento bolsonarista e a direita liberal do nosso país. Enquanto o bolsonarismo se caracteriza pela desinformação, pelo personalismo da família Bolsonaro e pela aversão à ciência e às instituições democráticas, a direita liberal brasileira se fundamenta em um corpo teórico robusto, com pilares construídos por pensadores como John Locke, Adam Smith, Friedrich Hayek e Milton Friedman.
No Brasil dos anos 80, 90 e 2000, a direita liberal tinha, em sua essência, um projeto de nação para o desenvolvimento do país, mesmo que a esquerda naturalmente discordasse dele. Essa direita buscava a prosperidade por meio da livre iniciativa, da proteção à propriedade privada e da redução da interferência estatal na economia. A defesa das liberdades individuais, da democracia representativa e do estado de direito eram inegociáveis. O bolsonarismo, no entanto, passa longe disso, especialmente ao atentar contra o Estado e suas instituições.
Vejamos o que pensadores do liberalismo postulavam em suas teorias. Para John Locke, o governo existe para proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos. Adam Smith, em “A Riqueza das Nações”, argumentou que a busca individual por ganhos, guiada por uma “mão invisível”, beneficia toda a sociedade. Isso é muito diferente do bolsonarismo, que alija o Estado ao profetizar a prosperidade por meio da religião, ele se utiliza da fé dogmática para manipular as massas, sem direito a questionar ou a refletir.
O bolsonarismo é exatamente o contraste da direita liberal, pois não apresenta um projeto de país coeso e soberano. Sua agenda é muitas vezes reacionária, focada apenas na manutenção do poder por meio da polarização e do ataque a adversários de forma não republicana. A aversão à ciência, demonstrada durante a pandemia de COVID-19, e o desprezo por instituições como a imprensa e o sistema eleitoral o afastam dos princípios fundamentais que a direita liberal defende. Friedrich Hayek, por exemplo, alertou sobre os perigos do poder concentrado e da supressão das liberdades individuais em seu clássico “O Caminho da Servidão”, filosofia totalmente oposta à centralização de poder, uma característica frequentemente vista em movimentos populistas e autoritários como o Bolsonarismo, que tentou um golpe de Estado em 08 de janeiro de 2023.
Diante disso, a identificação do bolsonarismo com a direita liberal do Brasil é, no mínimo, imprecisa e equivocada. A direita brasileira, em sua vertente liberal e democrática, tem uma história de líderes e intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento do país, pautados por princípios teóricos sólidos e pela busca por um projeto de nação — um Brasil livre, soberano e economicamente e socialmente desenvolvido. O bolsonarismo, ao contrário, parece basear-se mais em lealdades pessoais e na retórica da “malandragem”, minando as bases da democracia e do debate político sério, honesto e republicano.
A confusão entre esses dois movimentos não apenas empobrece a discussão política no Brasil, mas também desqualifica a história e o potencial da direita brasileira de oferecer soluções construtivas para os desafios do país. Houve uma época em que a direita brasileira era construída pela inteligência, havia intelectualidade, algo que sentimos falta na era bolsonarista. Diante da evolução da Inteligência Artificial, podemos observar um grande número de desinteligência natural, especialmente nas redes sociais, Eduardo Bolsonaro é um exemplo claro da desinteligência natural.
Ao analisar a história recente do Brasil, é possível traçar um claro contraste entre o bolsonarismo e a direita estadista e democrática, representada por figuras como Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso (FHC), José Serra e Simone Tebet, que inclusive faz parte do Governo Lula. Esses líderes não apenas se alinham à teoria liberal, mas também a aplicaram de forma pragmática para a construção de um Brasil mais democrático e desenvolvido. É possível sentir uma certa nostalgia dessa direita que contribuiu para qualificar a pauta das agendas nacionais, inclusive da própria esquerda. Lula foi forjado, também, neste movimento, seus debates com os políticos do PSDB merecem ser revisitados, as diferenças entre aqueles debates e os atuais são abissais.
Mário Covas foi um exemplo de gestor público da direita liberal do Brasil. Como governador de São Paulo, ele se destacou pela seriedade e pela busca por soluções técnicas eficientes para problemas complexos, como os da infraestrutura e da saúde. Sua gestão foi pautada por uma visão de longo prazo, com projetos estruturantes que visavam o bem-estar da população, em vez de pautas ideológicas extremas, personalistas e religiosas. Isso alimentava um debate mais qualificado no país. A esquerda intelectual tinha insumos concretos para debater. Hoje, o que o bolsonarismo pauta que efetivamente interessa à agenda nacional? Se espremermos, nada sairá de interessante, o que debater diante de tanta indigência intelectual produzida pelo Bolsonarismo ?
Hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) ainda é a principal figura da direita liberal no Brasil. Como presidente, FHC conduziu o Plano Real, estabilizou a economia e pôs fim a décadas de hiperinflação. Sua política econômica, baseada na responsabilidade fiscal e na abertura comercial, foi fundamental para modernizar o país e inseri-lo no cenário global. FHC também atuou na consolidação das instituições democráticas, pautado pela liberdade de imprensa e pelo debate público qualificado. Seu governo se baseou no diálogo e no consenso, características ausentes no discurso bolsonarista, que busca o caos. A esquerda naquela época tinha uma pauta qualificada para fazer oposição. E o que temos hoje com o bolsonarismo?
José Serra demonstrou seu compromisso com o país em diversas posições. Como ministro da Saúde, ele teve um papel crucial no combate à epidemia de AIDS, ele foi um dos pioneiros na distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais pelo SUS. Sua atuação foi pautada pela ciência e pela defesa da vida, em total oposição ao negacionismo e ao anti-cientificismo da família Bolsonaro e do bolsonarismo durante a pandemia de COVID-19. É importante lembrar que Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde de Bolsonaro, deixou o governo para não manchar sua reputação como médico, e fez muito bem.
Simone Tebet, ministra do governo Lula, ao defender, de forma pragmática e estadista, a necessidade de responsabilidade fiscal e a busca por um desenvolvimento econômico sustentável, com planejamento de longo prazo, se alinha à direita liberal. Em sua atuação, Tebet demonstra um compromisso com as instituições democráticas e o diálogo, características que a distinguem do bolsonarismo. Sua abordagem, focada em políticas públicas eficientes e na revisão de gastos, mostra uma preocupação em conciliar a austeridade fiscal com a justiça social, a busca pelo equilíbrio econômico é uma pauta central no discurso da direita liberal democrática. Em vez de uma agenda ideológica reativa e reacionária, suas ações como ministra do Planejamento ressaltam a busca por um projeto de país coeso, no qual a prosperidade econômica deve vir acompanhada da inclusão social, sem o personalismo ou a polarização que marcam as vertentes políticas do Bolsonarismo.
Ao compararmos essas trajetórias com o bolsonarismo, a diferença é gritante. Enquanto os líderes mencionados buscavam ou buscam o desenvolvimento do país, o fortalecimento das instituições e a proteção da vida e da saúde, o bolsonarismo se concentra na desinformação, na negação da ciência e no ataque a adversários políticos e às instituições, pois a democracia não interessa para esses grupos e facções. Essa diferença fundamental entre a direita democrática e estadista e o bolsonarismo demonstra por que identificá-los como a mesma coisa é uma simplificação perigosa que empobrece o debate político e desqualifica a história da política brasileira.
O fato é que a esquerda brasileira precisa de uma direita qualificada, e o Brasil precisa de projetos em torno de um debate de alto nível para avançarmos na distribuição de renda e na geração de riquezas.
O Brasil precisa urgentemente sair do esgoto do Bolsonarismo, um modelo que empobrece e emporcalha o debate político. É preciso caminhar para a construção de uma agenda nacional, na qual a política se desenvolva na dimensão de projetos coesos e de longo prazo para o país. Ganham a política, a verdadeira direita, a esquerda e de fato a nação. O Brasil precisa de projetos concretos, reais e necessários, e não da vassalagem do Bolsonarismo, cuja pauta se resume ao interesse pessoal.