Por Daniel Freire Costa
 
Chega a ser incômodo ver como hoje em dia uma fileira incontável de pessoas é cartesiana ao quadrado e vive em função de um método, do tipo em que todos os passos da humanidade devem ser racionalizados, com objetivos e essa coisa toda. “É preciso produzir”, essa parece ser a palavra de ordem. Produzir dinheiro, produzir redes de contato, produzir status. É o modo de vida padronizado da sociedade de mercado, em que tudo, tudo mesmo vira um produto. Até a maneira de agir e de pensar. Os relacionamentos encontram-se previamente organizados e etiquetados, como desinfetantes em gôndolas de supermercado. Praticamente todos nós estamos enfiados até o último fio de sobrancelha nesse modo de viver.

Não existe outro lugar para aqueles que fogem do padrão, a não ser a exclusão social. Quem não se enquadra nesse protótipo de existência é sumariamente rechaçado do convívio. É como se apenas fosse possível encontrar a felicidade numa redoma de vidro forjada pelas regras do comércio. O que significa, em outras palavras, trabalhar, cumprir horários, comprar, vender e ensinar a família a reproduzir todos esses valores. A felicidade é um produto e deve ser adquirido após suor, esforço e obstinação. There is no free lunch. Não existe almoço grátis, dizem os economistas, numa síntese do viver no mundo atual.

Viajar (de preferência para o exterior) é preciso, viver não é preciso. Comprar roupas de marca, carros importados e apartamento em Miami também é preciso. Como cantava Vinícius de Moraes, “bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra”.

Não há banho de rio ou jazz de Coltrane que dê jeito. Nada de dar bola para o outro que está ali ao seu lado, mas que escolhe não seguir essa mesma cartilha. Os gestos desinteressados não têm valor. Se o sujeito vai a uma festa na terça, gosta de tomar uma brahma no posto de gasolina, não pega no batente oito horas por dia, e desobedece o tempo inteiro às lições escritas no caderninho do neoliberalismo, ele passa a ser visto como um doente social, de que todas as pessoas sãs devem se afastar.

Muito mais. São atos de rematada tolice gastar tempo e dinheiro com  miseráveis, ou abrigar um desvalido sem receber nada em troca. Na realidade, agir assim não tem sentido dentro do circuito fechado em que o individualismo é o principal fio condutor. E até mesmo um artigo que não fale sobre economia, marketing ou qualquer outro assunto do gênero, é mercadoria sem importância, já que não acrescenta nada a coisa alguma num mundo em que, antes de qualquer coisa, é preciso produzir.

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Artur Cesar Ramos de Castro
2 anos atrás

Daniel é lúcido ao extremo e, num mundo definido e dominado pelo “fetiche da mercadoria”, corajoso. (Anda! entra na caixa, seu…seu…”subversivo”!)
PS: ainda bem que ele não obedece.
Parabéns, Daniel.

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