Por Fabiano Mendonça*
Ainda que não percebamos, nossos atos desejam o melhor ou o pior para os outros; mesmo até que não concordemos. E a ideia do Direito é proteger os melhores desejos. Por isso ele protege o desenvolvimento e a Paz na sociedade. E todos nós temos direito a isso; ou temos sonhos ou ninguém poderá tê-los. É um direito fundamental, e seu nome é Felicidade: o direito a existir cada vez mais profundamente, a desenvolver-se livremente. Isso envolve duas consequências.
Primeiramente, há um direito a políticas públicas eficientes que assegurem a liberdade de buscar os próprios desígnios. Em geral, no que diz respeito à qualidade de vida, não temos como exigir com proteção judicial um bem da vida específico, como uma casa, um emprego novo ou sentir-se bem. Na verdade e no fundo, o direito é apenas uma possibilidade de exigir que pessoas façam algo que atenda a um interesse nosso, conforme o caso: que nos tratem bem, que provejam educação, proporcionem alimentação, paguem benefícios, entre outras condutas que proporcionem meios de se alcançar resultados que possam trazer satisfação a cada cidadã(o). Nesse contexto, está a possibilidade de se exigir não sofrer violência ou ameaça dela no ambiente doméstico, seja de que tipo for, pois iria de encontro a toda a proteção que permite a alguém ser a si mesmo cada vez mais.
Depois, há o direito a poder exercer livremente os dons, características e vocações individualmente possuídos, capazes assim de trazer grande benefício à comunidade. A democracia é, por natureza, plural. E, se há uma característica marcante no ser humano, como apontou Hannah Arendt, é a sua irrepetibilidade, a individualidade de cada um. O grande paradoxo está em que cada nascimento repete o irrepetível. Mas, por vezes, a sociedade se depara com um grande dilema: uma vez que não é provável que exista um amplo consenso sobre o comportamento correto a adotar diante de determinado caso, são feitas leis que trazem regras e padronizações que anulam essa individualidade.
Claro, há limites. Não podemos fazer tudo o que desejamos: também devemos respeitar a felicidade do(a) outro(a). E temos o dever de não violar a nossa própria felicidade. Assim, ela é um direito, mas também um dever. Só assim pode haver o verdadeiro espaço para o desenvolvimento, no qual todos(as) se beneficiam solidariamente da proteção a cada um(a). Então, não é possível haver interferência externa nas condições de existência individuais se estas dizem respeito a algo essencial a um(a) cidadã(o) e não trazem prejuízo imediato ao desenvolvimento de outro(a). O lar é o espaço primordial para o desenvolvimento da personalidade e a violência nesse ambiente ultrapassa o que é permitido. São as lições das encíclicas Pacem in Terris e Populorum Progressio.
Por isso, há uma evolução constante nas decisões dos Tribunais. O Brasil tem muitas Cortes Judiciais, cada uma tem sua atribuição própria, chamada juridicamente de competência. Em assunto de violência doméstica, a última palavra é dada pelo Superior Tribunal de Justiça, ou STJ.
Em decisão da semana passada, o STJ entendeu que a Lei 11.340, de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha – depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a violência doméstica praticada contra a brasileira homônima e a ausência de políticas eficientes sobre o tema – é aplicável a mulheres trans. No gênero humano feminino – mulher – estão, portanto, não apenas aquelas definidas pelo sexo verificado no nascimento, mas também aquelas cujo gênero foi identificado posteriormente.
A decisão reflete e dá consistência a dois aspectos: o direito precisa ser amparado por dados de ciência e repercute a consagração do direito à felicidade como fundamento para a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo, feita pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, do direito à autoidentificação de gênero (ADI 4.275) e da proibição da transfobia (ADI por Omissão 26). Por outro lado, ela trata de um conflito em que há violência estrutural contra a mulher e também preconceito. Uma situação que só pode ser transformada quando se consideram os padrões que a determinam.
As ciências exatas encontram sua limitação ao não poderem adentrar no âmago do ser humano. Por isso, a determinação biológica do sexo é um critério que traz uma concepção ultrapassada de restrição legal que termina por valorizar elementos de opressão, sem atenção aos compromissos mais amplos de proteção e promoção social. Em vez de garantir um direito, apenas aumenta o grupo de pessoas excluídas da proteção, o que incentiva mais a liberdade do agressor do que a proibição da conduta.
Um novo passo foi dado em direção à compreensão efetiva do direito à felicidade como merecedor de proteção judicial. Ao mesmo tempo, a sociedade ganha em desenvolvimento, com a atribuição de mais dignidade a um grupo excluído. Não basta dar o direito a se autoidentificar, é preciso aceitá-lo de verdade na interpretação da ordem jurídica.