Annie Ernaux compõe o início de O Lugar narrando o seu exame de admissão como professora do Ensino Médio, o que acontece poucos meses antes da morte de seu pai. O primeiro acontecimento se dá em Lyon e o segundo em uma cidadezinha da Normandia chamada apenas de “Y”. A distância geográfica não foi difícil de vencer: ela acompanhou os últimos dias de vida do pai ao seu lado. Mas perdurou na memória um outro tipo de afastamento.
“Um dia terei de explicar todas essas coisas. Ou seja, terei de escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou”, diz a narradora.
Escrita neutra
Ela também explicita a escolha estética que faz para relatar essas memórias: “Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa ‘cativante’ ou ‘comovente’”. Ernaux adota, então, uma escrita neutra e rigorosamente objetiva.
Talvez já dê pra perceber a dificuldade em classificar O Lugar. Romance? Narrativa ensaística? Memórias? Acho que tudo ao mesmo tempo – e isso proporciona uma estranheza que acompanha praticamente toda a leitura, mas que denota justamente a originalidade da autora, que consegue articular todas essas propostas de maneira integrada e rica de significados.
Seu pai era trabalhador rural desde a infância e chegou a ser alfabetizado, mas não passou muito disso. Servir ao exército e conhecer outros lugares o ajudou a ter uma visão mais ampla da que estava destinado a ter. E por isso resolveu deixar de ser camponês e virar operário e, depois, com enormes dificuldades, um pequeno comerciante – sempre ajudado pela esposa, que exerceu as mesmas funções.
Diferenças
A melhoria de vida da família, aliada à ampliação do acesso ao ensino e às mudanças do pós-guerra, fizeram Annie Ernaux, já na adolescência, conviver com referências culturais que em tudo eram distintas daquelas do pai. Para além disso, as diferenças iam da maneira de falar, se comportar à mesa ou em ambientes sociais, até à visão intimíssima que ambos tinham deles mesmos frente ao mundo.
Aqui o talento da autora mais uma vez se destaca, por conseguir representar tudo isso por meio de uma rememoração quase etnográfica – apesar de atenta a detalhes que talvez só uma filha fosse capaz de expressar – e de contextualizações históricas, sociológicas e culturais que, mesmo sendo apenas pinceladas, são mais do que suficientes para erigir um quadro pungente da vida do pai e da relação dos dois.
Origem social
Ernaux volta esse olhar objetivo inclusive para si mesma, ao demonstrar a escolha do modo de vida que assume, em linha com uma classe média urbana ascendente, em um ambiente que relega simplesmente à categoria de inferior o que diz respeito à origem social, econômica e geográfica da família. Nada disso, no entanto, parece ser uma escolha deliberada da parte da personagem, nem se constitui de grandes acontecimentos. ⠀⠀
Mas existe um incômodo que surge em Ernaux com o passar do tempo e se acumula em percepções do presente que remetem ao seu passado. E daí surge a busca através da memória e surge também o próprio livro. Annie Ernaux dá a volta em sua história e nos entrega uma obra que abarca de maneira talentosa e original as contradições de um percurso ao mesmo tempo comum e muitíssimo pessoal.
Ficha técnica
O Lugar [1983]
Annie Ernaux (França, 1940 – )
Editora Fósforo, 2021, 72 páginas