Meio de uma semana, fim de tarde.

Acompanhado de Raposa Pai (sempre ele), eu andava por um dos prédios do Centro Administrativo do RN, após uma reunião secreta com meu agente cubano infiltrado no complexo.

Passando por uma lanchonete, pergunto à responsável se ainda há café. A moça responde que “vai ver” – era fim de expediente e ela já começara a guardar seu material.

No banco ao lado, vejo Jana Sá.

Meu pai, único mais desatento que eu, não a notou. Então eu disse: “eis aqui um fã seu” e apontei para o senhor com chapéu e semblantes inconfundíveis. Surpresa, Jana larga o celular (ainda bem que o fez).

Chega meu café, era o último da garrafa. Tomo-o, já não tão quente e com o pó no fundo do copo, enquanto meu pai, agora atento, exclama: “O rio que corre em mim!”. Tratou-se de referência ao artigo que Jana escreveu no Portal Saiba Mais sobre sua história, intimamente ligada à do seu pai, Glênio Sá, um dos únicos remanescentes da Guerrilha do Araguaia, “que sobreviveu à ditadura, mas nunca foi devolvido por inteiro”.

Inicia-se então uma conversa sobre política, e meu pai fala da sua própria experiencia frente à ditadura militar. Conta como, escondido e num único fim de semana, léo o “Batismo de Sangue” de Frei Betto, porque o livro deveria ser devolvido o quanto antes, em segredo. Relembra como sua família de 12 irmãos vivia apreensiva na comunidade rural de Boa Vista, em razão do fato de que meu avô, Pedro Raimundo, era uma liderança sindicalista em São Paulo do Potengi.

Meu café acaba, entro na conversa, em continuidade ao meu pai e falo da luta atual.

Inicia-se o debate sobre as batalhas que devem ser travadas para não vivenciarmos o mesmo que Glênio Sá, Pedro Raimundo e suas famílias, durante a repressão da ditadura empresarial cívico-militar.

“Temos de participar de todos os embates postos, ocupar todos os espaços possíveis!”, agora sou eu que exclamo, sob os efeitos psicoestimulantes provenientes do café frio.

Jana concorda e, para a minha felicidade, afirma: “dois dos temas centrais que precisamos disputar são a religião e a segurança pública, áreas das quais nos afastamos, permitindo que fossem maliciosamente ocupadas pela extrema-direita”.

“É precisamente para isso que eu vim!”, exclamei, agora sob os efeitos psicoestimulantes provenientes da esperança.

A moça da lanchonete não diz, mas, com uma linguagem não verbal de peculiar eficiência, deixa claro que o seu expediente acabara.

Pago o café. Despedimo-nos, com meu pai sorridnetemente dizendo “obrigado pela conversa”, frase por mim ecoada mentalmente.

Saio do prédio, olho para o sol que se põe, lembro de Heidegger e do constante devir do ser-no-tempo.

Percebo que, sob certa perspectiva, os rios de Glênio Sá e Pedro Raimundo uniram-se naquele momento, dando origem a algo novo: um rio que agora corre em mim.

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