Marina Basso/Diplomatique – A campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) e de outras organizações da esquerda, mobilizando os pobres contra os ricos, naturalmente está incomodando o status quo. Lula, ao endossá-la, distancia-se do habitual papel de mediador. Mas sua estratégia está alinhada a tendências identificadas pela ciência política. Vejamos.
- Desde a crise do capitalismo de 2008, as eleições não tendem mais ao centro. A crise marcou um ponto de virada. Partidos socialdemocratas e trabalhistas, que antes dominavam o cenário político em muitos países, enfrentaram crises de identidade e perda de apoio eleitoral. A continuidade da adoção de políticas neoliberais, como pela Terceira Via de Tony Blair e na gestão de Barack Obama, alienou sua base tradicional. Depois de 2008 houve também crescimento significativo de movimentos e candidaturas anti-establishment da esquerda com pauta fortemente distributivista que depois capitularam (lembremos do Syriza). Esses elementos abriram terreno para a extrema-direita: Brexit, Trump, Nova Democracia na Grécia, etc.
- A extrema-direita é que tem capturado a indignação dos trabalhadores contra injustiças sistêmicas. A esquerda tem aparecido, no Brasil e em muitos lugares do mundo, como defensora do status quo, ao defender as instituições democráticas – que fazem pouco sentido para quem vive de bico-em-bico, pega 4 horas de ônibus por dia, não tem dinheiro para necessidades básicas. E a extrema-direita, que endossa políticas concentradoras, paradoxalmente vem crescendo, porque oferece narrativas anti-privilégio, de empreendedorismo e de ruptura que convencem os cidadãos cansados de 40 anos de exclusão crescente.
- O neoliberalismo progressista, que tem marcado a esquerda no Brasil e em muitos lugares do mundo, perde o foco do principal conflito nas sociedades modernas, que é o conflito da distribuição da propriedade, das riquezas e das oportunidades. Ao explicar, de maneira sintética, que a questão é de classe social – ou de pobres contra ricos – a esquerda recupera sua capacidade de agenda e de diálogo direito com as massas populares.
- Direita e a extrema-direita definiram sua estratégia para 2026. Perdendo popularidade até mesmo em sua cidadela eleitoral, as chances de Lula reeleger-se estão caindo. Um dos maiores trunfos do petista, porém, era a divisão interna na direita e na extrema-direita: Bolsonaro não tem nem terá direitos políticos, mas não abre mão de sua candidatura. Tarcísio, o favorito do establishment, hesita em sair candidato nessas condições. Mas no último domingo, Bolsonaro deu a senha, dizendo algo como: “quero eleger metade do Congresso, não preciso ser presidente”. Nesse caso, a extrema-direita e a direita podem lançar quantos candidatos quiserem, porque a tendência é que um deles vá para o segundo turno com Lula e tenha o apoio de Bolsonaro para vencer.
- Desde o pós-pandemia, a reeleição tornou-se mais difícil tanto no Brasil quanto globalmente. Um levantamento do Pulso, analisando 36 eleições desde 2020, mostrou que, em, apenas 45% dos governantes conseguiram se reeleger, contra 63% em 2021. Isso reflete a insatisfação com crises econômicas pós-Covid, como inflação e desemprego, que sobrepujaram a avaliação inicial positiva de líderes durante a vacinação
- A lição Dilma. Um dos fatores para a queda de Dilma em 2015, conforme análise do cientista político André Singer, foi seu governo ter o mote de que estava criando uma nova classe média. A classe média, entretanto, tem valores das classes dominantes, e não dos trabalhadores. Quando as classes dominantes se articularam contra o governo da então presidenta, o povo não esteve com ela, mesmo com as políticas desenvolvimentistas que ela tentou levar a cabo. Lula é diferente, com histórico de mobilização direta do povo mais pobre. E para manter suas bases deve continuar a fazê-lo com mais ênfase. Veja-se que um dos expoentes da extrema-direita, Nikolas Ferreira, fez sua campanha contra o decreto do Pix invocando textualmente os trabalhadores.
- Em um sistema presidencialista como o brasileiro, não é apenas legítimo, mas necessário que o Presidente da República mobilize diretamente os eleitores – afinal, o voto popular é a fonte primária de sua legitimidade. O Brasil escolhe seu chefe do Executivo por meio de eleição direta, conferindo-lhe um mandato autônomo em relação ao Congresso. No entanto, o Legislativo vem ampliando sistematicamente sua influência sobre o processo decisório: análise obrigatória de vetos por ordem cronológica (2013), a instituição do orçamento impositivo (2015). Esse movimento ganhou força após os efeitos da crise financeira de 2008, que, por Lula ter adotado medidas anticíclicas, chegaram tardiamente no Brasil, fragilizando o governo eleito. A criação das emendas de relator (2019) ocorreu durante o governo Bolsonaro, que, sem adotar as estratégias tradicionais do presidencialismo – ter partido ou coalizão majoritária, ou construir coalizões ad hoc — abdicou de governar. O resultado é: em 2025, R$ 50 bilhões do Orçamento da União estão vinculados a emendas. Portanto, recorrer à população não é apenas um direito democrático, mas um instrumento essencial para equilibrar as forças institucionais e garantir a governabilidade.
- Sincronicidade com os Estados Unidos com dois anos de atraso. Como argumentam André Singer, Cicero Araujo e Leonardo Belinelli, em ambos os países a queda da participação da indústria no PIB e no emprego, iniciada nos anos 1980, gerou insatisfação em setores da classe trabalhadora, que passaram a apoiar líderes antidemocráticos e antiestablishment.
Além disso, o crescimento da influência evangélica conservadora e as divisões geográficas — como o apoio do “interior profundo” nos EUA e das regiões do agronegócio no Brasil —, fortaleceram essas lideranças. Talvez esses fatores ajudem a entender o paralelo entre Trump e Bolsonaro; e o 6 de janeiro e o 8 de janeiro, com dois anos de diferença. Há ainda outros paralelos para os quais a centro-esquerda brasileira deve estar atenta: o descolamento mais acentuado do Partido Democrata em relação aos trabalhadores desde a era Obama – que não foi revertido nem mesmo com as iniciativas pró-trabalhador de Joe Biden, que viu as propostas minadas por forças como o mercado e o Congresso; e a campanha de Kamala Harris, que teve como mote a “alegria” – uma sugestão laudatória do status quo que lembra o que o governo brasileiro tentou usar no começo desse ano, transmitindo um suposto otimismo a cidadãos que estão muito aborrecidos. Certamente não só por esse fator, mas também por isso (conforme análise de Matthew Karp), ela perdeu.
A mobilização direta dos pobres não significa que Lula ganhará as próximas eleições, mas lhe dá maiores chances. Também não significa que ele está rompendo com o padrão neoliberal que atinge quase todo o globo, mas sim que está procurando mexer um pouco que seja na desigualdade tão persistente no Brasil.