ICL – Por Carolina Ferreira
“O vídeo de hoje é uma denúncia. O que vocês estão prestes a ver é um assunto extremamente sério.” Com essa advertência, o youtuber Felipe Bressanim Pereira (27), conhecido na internet como Felca, inicia a gravação que o tornaria pivô de um debate que ganhou repercussão nacional.
Dono de um canal com 5,68 milhões de inscritos, Felca publicou, na última quarta-feira (6), um vídeo de quase uma hora em que denuncia o fenômeno de monetização, por adultos, de conteúdos com menores de idade nas redes sociais. Entre os riscos apontados no vídeo estão a “adultização” e a sexualização de crianças e adolescentes. Situações apresentadas como entretenimento, mas que expõem jovens a situações de risco e danos psicológicos e morais.
Ao longo do vídeo, o influenciador costura diversos exemplos para ilustrar a sua denúncia, como o caso do criador de conteúdo Hytalo Santos, apontado como “criador e publicador” de um sistema de exploração de jovens.
Felca chegou nestas denúncias através de uma espécie de experimento. O youtuber criou uma conta do zero no Instagram com um título neutro. Sem nenhum histórico, nenhum seguidor, nenhuma postagem, ou seja, sem nenhum tipo de condicionamento anterior. Após o primeiro passo, começou a pesquisar por conteúdos de crianças e adolescentes considerados “sugestivos” e a interagir com eles, como fotos de biquínis, fazendo poses, etc.
O objetivo de Felca era “treinar” o algoritimo de sua conta. “Esse é um movimento que um pedófilo faria”, afirma. Após a primeira etapa, começaram a aparecer diversos conteúdos de meninas jovens. Alguns aparentemente inofensivos. Porém, não na mão de pedófilos. “Eles pegam um conteúdo que é inocente e transformam num ponto de troca”, explica o influenciador. Muitos deles colocam o link do telegram na bio do perfil para fazer esse tipo de troca”, revela.
Com isso, Felca expõe que a exploração de conteúdo infantil não é um crime restrito a um canto escondido da deep web. Ocorre também bem na frente dos nossos olhos, onde qualquer pessoa pode ver.
‘Infância como nicho rentável’
O funcionamento dos algoritmos é peça central para entender como conteúdos de exploração infantil se espalham nas redes sociais. Projetados para maximizar engajamento e tempo de permanência dos usuários nas redes, eles não diferenciam se um conteúdo é ético ou nocivo. Apenas promovem o que desperta mais cliques, comentários e compartilhamentos dos usuários.
“Esses sistemas respondem a métricas quantitativas de interação, que muitas vezes são impulsionadas por choque, curiosidade e desejo”, explica Biana, pesquisadora do Laboratório Etnográfico de Estudos Tecnológicos e Digitais da USP (LETEC-USP). Na prática, o mesmo mecanismo que viraliza vídeos de gatinhos para quem interage com esse tipo de conteúdo, também pode impulsionar conteúdos que sexualizam crianças, como demonstrou Felca.
Mas, para Helena Martins, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), o problema não está no mecanismo em si. Os algoritmos são operações baseadas em determinadas definições, que variam de acordo com as determinações de cada plataforma.
“O problema é, sobretudo, o interesse da plataforma que guia (…). Não é um problema só técnico. É um problema da escolha política de, por exemplo, permitir direcionar anúncios para crianças e adolescentes. ”
A professora ainda explica que grande parte do que as pessoas consomem online não vem de buscas voluntárias. “Mais 80% do tráfego de visualização de vídeos no YouTube se dá a partir de recomendação. Quer dizer, é a plataforma que está escolhendo qual tipo de conteúdo ela vai sugerir para determinados usuários”.
Segundo Biana, as denúncias de Felca sobre a monetização e a exploração de jovens na internet revelam “uma das engrenagens mais lucrativas e sombrias das redes sociais”. Para ela, “a exploração infantil em ambientes digitais não é um efeito colateral, mas um subproduto previsível de uma arquitetura construída para privilegiar a atenção acima da segurança”.
O caso revelado em julho pelo “The Intercept Brasil” ajuda a dimensionar o tamanho do mercado que lucra com a exploração infantil. A reportagem revelou a exploração de crianças e adolescentes por parte da agência paranaense Dreams, que criou uma rede de influenciadores e youtubers com mais de 30 milhões de inscritos, cujos conteúdos, que incluem insinuações sexuais, cenas de violência e propaganda ilegal de casas de apostas e produtos de tabaco, rendem cifras milionárias. Só o canal do fundador da empresa, João Caetano Bressan de Oliveira, gera cerca de R$1,1 milhão por ano, segundo o instituto de pesquisa Social Blade.
Para Biana, o caso revelado pelo Intercept “escancara como o capitalismo digital transformou a própria infância em um nicho altamente rentável”. Controlados por adultos, esses canais atraem grandes audiências e lucram por meio de publicidade e patrocínios, expondo menores a riscos físicos e psicológicos.
E não se trata de casos isolados. O relatório Who benefits? Shining a Light on the Business of Child Sexual Exploitation and Abuse, publicado em 2025 pelo Childlight, Instituto Global de Segurança Infantil da Universidade de Edimburgo, estima que cerca de 300 milhões de crianças sejam vítimas, todos os anos, de abusos facilitados pela tecnologia.
Segundo o estudo, as plataformas não apenas permitem, mas ajudam a viabilizar o crime. Existe um mercado global para material de abuso sexual infantil, gravado ou transmitido ao vivo, que lucra com essea rede criminosa. Um único vídeo sob demanda pode custar US$1.200 (£940).
‘Devemos combater as big techs’
O vídeo de Felca gerou repercussão imediata no país: mobilizou o Judiciário, o Ministério Público da Paraíba e até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou a defender a regulamentação das plataformas digitais. Cerca de 35 novos projetos sobre abuso infantil foram propostos no Congresso Nacional. Mas, para especialistas, existe o risco da pauta ser sequestrada por agendas paralelas e perder o foco da raiz do problema.
Apesar do interesse repentino de parlamentares sobre segurança de crianças na internet, o Núcleo Jornalismo revelou que 75 projetos sobre esse tema estavam parados na Câmara, desde 2015, e nenhuma lei sobre esse assunto foi criada nos últimos 7 anos.
“Vemos sempre a mesma lógica”, diz Helena Martins. “O Congresso reage a um escândalo com respostas midiáticas, que rendem manchete, mas não resolvem o problema.” A professora teme que as denúncias de Felca sobre a exploração infantil na internet sirvam de pretexto para projetos punitivistas e moralistas, desviando a atenção das mudanças estruturais necessárias para impedir que empresas lucrem com violações de direitos humanos.
“Defendo novas leis”, ressalta, como a aprovação do PL 2628″. Porém, E queremos que o governo avance. “A diferenciação é de não ficar só na superfície, com novos projetos que saem do nada e vão nesse caminho do punitivismo. Mas não é o caso do 2628 ou mesmo daquele 2630, que foram objeto de muitas discussões”.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e o senador Jaime Bagattoli (PL-RO), encabeçaram a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o papel de influenciadores e plataformas na dissimenição de conteúdos que exploram e sexualiam crianças no ambiente digital. No entanto, Damares publicou em sua conta no X que a CPI “(…) não tem objetivo de regulamentar redes sociais. Vamos chamar para responsabilidade quem produz os conteúdos ilegais”.
Segundo Biana, setores da direita tentam transformar um debate sobre a permissividade das plataformas digitais em uma cruzada sobre “bons costumes”. “As big techs não são apenas o meio onde isso acontece; elas são cúmplices e operadoras ativas de um sistema que lucra com esses crimes”, afirma.
Para as duas pesquisadoras, o Brasil já tem instrumentos robustos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei 13.431/2017, para proteger crianças em situações de violência.
O que falta é fiscalização real e responsabilização das plataformas quando lucram com conteúdo ilegal. Isso significa obrigar empresas a ter sede e moderação local, criar canais de denúncia rápidos, permitir auditorias externas com poder de sanção e limitar a coleta e uso de dados de crianças.
Biana ainda ressalta que o problema não se restringe ao que é publicado na internet, mas também ao “que está embutido nas regras invisíveis que regem a plataforma, desenhadas para extrair valor mesmo de danos sociais graves”. O modelo europeu do Digital Services Act pode servir de inspiração, mas tanto BIANA quanto Alexandre Orrico, diretor editorial do Núcleo Jornalismo, apontam para as especificidades dos países que não falam inglês. Sem moderação local e contextualizada, com equipes especializadas no idioma e na cultura de cada região, “qualquer regra vira peça de marketing”.
Para Helena, o desafio é não desperdiçar a comoção pública com medidas rasas, de efeito imediato, mas inócuas no longo prazo. “Se não enfrentarmos o modelo de negócios das plataformas, estaremos apenas trocando a cortina do palco, enquanto a peça continua a mesma.”