Dada a velocidade e o volume de informações que nos rodeia, fatores que transformam episódios da semana passada em notícia velha, o leitor talvez não se recorde, mas quando março se iniciou, a Guerra da Ucrânia ainda não havia completado nem dez dias e já havia quem dissesse que o avanço russo estava lento, isto é, que, provavelmente, as pretensões de Vladimir Putin de ocupar todo o território ucraniano e derrubar o presidente Volodymyr Zelensky estava demorando mais do que os invasores esperavam. Hoje, um mês depois, talvez essa impressão diga menos respeito a uma suposta letargia dos militares russos e mais à ansiedade do Ocidente de ver logo o desfecho do conflito, fosse qual fosse.

Imediatistas como somos, rapidamente nos envolvemos no conflito ucraniano, com teorias geopolíticas apresentadas à exaustão por especialistas aqui e outros não tão especialistas acolá, sem falar no desamparo do ponto de vista humanitário sentido pelo cidadão ocidental, especialmente por se deparar em uma guerra em território europeu, ainda que em sua periferia. Mas não demorou para que os Estados Unidos, liderando, indiretamente, este lado do conflito, aproveitassem esse clima de sensacionalismo e (em adição às medidas drásticas de sanções financeiras, econômicas e comerciais que visavam a arruinar a economia russa) tratou de neutralizar as fontes midiáticas russas, bloqueando a Russia Today e o Sputnik, e disseminar a ideia de que os russos estavam, a despeito de sua presença crescente na Ucrânia, sofrendo inúmeras derrotas, e descontando tais fracassos na forma de variados atos de desespero — fossem ataques covardes à população civil ou, em seu próprio país, na repressão a movimentos contrários ao conflito. A propaganda surtiu efeito positivo, como não poderia ser diferente: diz o filósofo Slavoj Zizek que o inimigo é alguém cuja história não foi ouvida. No Ocidente, o lado russo não tem vez na grande mídia. Só que as caricaturas foram exaustivamente exploradas, de tal maneira que já nem tem mais graça a comparação de Putin com Hitler, ou da invasão russa com a anexação nazista aos sudetos, aquela que prenunciou o início da Segunda Guerra. O problema nisso é que, quando você, já de cara, compara alguém com Hitler, sobra pouco artifício retórico depois para manter a eficácia da propaganda…

Nessas semanas que se passaram, tanta coisa foi acontecendo que há quem nem se recorde de que há uma guerra rolando. Só que o fato de não se interessarem tanto quanto antes pelo episódio não significa que ele tenha perdido sua importância. E isso, os russos, utilizando-se da paciência estratégica que advém da veia oriental de sua tradição, têm procurado aproveitar da melhor forma. Tendo já ocupado boa parte do leste ucraniano, Putin parece apenas administrar o conflito e ganhar tempo, enquanto a Ucrânia se desgasta — e, a partir dela, todo o Ocidente, em especial os Estados Unidos. Não é forçoso dizer que a aproximação de Rússia e China, agora muito mais intensa do que já vinha sendo nas últimas duas décadas, enterra de vez uma etapa vitoriosa da política externa estadunidense, manifesta especialmente na estratégia de “dividir para conquistar”, e que ficou muito bem representada pela aproximação entre EUA e China, costurada por Henry Kissinger, no início dos anos 1970, rachando definitivamente o então bloco socialista e, assim, enfraquecendo seu rival principal, a União Soviética, ainda que às custas da ascensão do dragão chinês, que obteve, naquele momento, o reconhecimento de que precisava no mundo todo — bem como a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU — e deu os primeiros passos no rumo da economia política que o levaria a se tornar o que é hoje.

Outro efeito da guerra que pode ser favorável à Rússia reside no fato de que o bloqueio à sua energia pode gerar crises sérias na Europa. O melhor exemplo disso está na Alemanha, que anunciou possibilidade de recessão caso o embargo se concretize. Além disso, o rublo, cuja desvalorização parecia retumbante quando alcançou uma cotação de mais de 150 para cada dólar (decorrente do bloqueio de reservas russas nos bancos estrangeiros), a essa altura já caiu para a casa dos 80, voltando, praticamente, a como era antes (em 31 de dezembro do ano passado, um dólar valia 74 rublos). Economistas do lado de cá se utilizam de todo contorcionismo conceitual possível para alegar que essa valorização do rublo não vem da dinâmica do mercado, e sim de manobras do Banco Central, que, entre outras coisas, obrigou os exportadores a comprar rublos, bem como proibiu bancos de venderem moeda estrangeira por seis meses. Em resumo, o que os economistas liberais estão dizendo é que a recuperação da economia russa não é uma recuperação de verdade, é apenas… uma recuperação. A questão é: recuperada ou não, a Rússia tem mantido fôlego firme e, assim, tem conseguido driblar, até o momento, boa parte das investidas contra o país.

Isso tudo não significa, claro, que a Rússia está pintando e bordando. A redução no ritmo de ocupação que o exército russo vinha empreendendo na Ucrânia também foi fruto da tática deste país. A principal delas não é exatamente muito nobre, mas, com uso adequado de propaganda, tem sido aceita: o envolvimento de civis no conflito, seja diretamente, conclamando-os ao combate (distribuindo armas ou incentivando a produção de coquetéis molotov), seja inserindo equipamentos militares de defesa em áreas residenciais, colocando ainda mais em risco a população, o que reduz o avanço russo, seja para reduzir as baixas civis no lado ocupado (cujo saldo é tão-somente negativo para as tropas russas), seja para evitar o ambiente de “guerra de guerrilhas” que o combate urbano favorece, reduzindo a vantagem bélica dos russos.

O problema das táticas ucranianas não está no presente, mas no futuro: esse negócio de distribuir armas indiscriminadamente a civis já deu errado em outros lugares, e não é improvável que o mesmo aconteça na Ucrânia. É possível que a permanência de Zelensky na presidência ao fim do conflito possa arrefecer o risco de um clima de guerra civil. Isso, contudo, não passa de uma expectativa; o risco de o país se tornar ingovernável, vença quem vencer esta guerra, já é real.

Leon K. Nunes é professor, psicanalista e doutor em Ciências Sociais.

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