Entidades internacionais, com base em pesquisas, têm publicado relatórios sobre a democracia no mundo. Os mais recentes são relativos a 2021, que como os anteriores constataram uma situação preocupante: a deterioração da democracia, revelando que os espaços democráticos têm encolhido (em todos os continentes), expressão do que alguns têm chamado de um “colapso da democracia” ou uma “recessão democrática no mundo”.
E vem de antes. Em um livro publicado em 2015 intitulado O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo, Larry Diamond mostra o processo do colapso da democracia que tem se aprofundado com o passar dos anos e que em vez de se ter mais democracia no mundo, ocorreu o inverso. Ele afirma que entre 2000 e 2014 foram contabilizados 25 colapsos democráticos no mundo “não apenas através de flagrantes golpes militares, mas também por meio de degradações graduais de direitos democráticos e procedimentos que por fim empurraram a democracia acima do limiar do autoritarismo”.
Em novembro de 2021 foi publicado o relatório O estado global da democracia 2021: construindo resiliência na era da pandemia do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), sediado em Estocolmo (Suécia). Os dados são relativos a 2020 e afirmam que mais de um quarto da população mundial vivia até então (e nada indica que tenha mudado) em democracias em retrocesso. Há também o que o relatório chama de regimes autoritários e híbridos (com uma tendência à degradação democrática) e que, somados, seriam em torno de 70% dos países.
Para 2021, uma análise do IDEA apontou que a existência de democracias no mundo eram “o número mais baixo em vários anos” e que havia até então 20 regimes considerados como “híbridos” (entre outros a Rússia, Marrocos e Turquia), e 47 regimes autoritários, entre eles China, Arábia Saudita, Etiópia e Irã.
Esses dados confirmam as constatações do Instituto Variações da Democracia (V-Dem), da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que publicou em março de 2021 um documento com dados relativos a 202 países, com 450 indicadores de democracia (o relatório estabelece índices que variam de 0 a 1, no qual 0 representa um regime ditatorial e 1 uma democracia plena).
A pesquisa revelou, entre outros dados, que entre 2010 e 2020 houve uma deterioração da democracia. Em 2010, 48% da população mundial viviam sob regimes considerados não democráticos e este índice subiu para 68% em 2020. Em 2021, “o nível de democracia desfrutado pelo cidadão global médio caiu para os níveis de 1989”, os avanços democráticos ou ficaram estagnados ou foram erradicados, como são os casos do Brasil, especialmente a partir de 2019, com a posse de Jair Bolsonaro (mas cujo processo de deterioração democrática se acelera a partir de golpe de 2016 contra Dilma Rousseff), Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia que registraram as maiores quedas nos índices de democracia. No grupo do G-20 além de Brasil e Turquia, houve também uma queda nos índices de democracia na Índia que passou a ser classificada como “autocracia com eleições”.
De acordo com o índice de qualidade da democracia do Instituto o Brasil deixou o grupo das 30 democracias mais sólidas do mundo no qual figurava no início da década passando em 2020 a ocupar a 56ª posição. Embora ainda uma “democracia eleitoral” na classificação, encabeça o “top 10” de países mais autocratizantes, que incluem a Turquia e Índia, ambos já “autocracias eleitorais”.
Segundo o relatório seis dos 27 membros da União Europeia estão agora se autocratizando. E que consequências tem? Durante reunião da Assembleia Geral da ONU em outubro de 2021, a relatora especial sobre a proteção da liberdade de opinião e expressão, Irene Khan, nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos em 2020, e a primeira mulher a ocupar o cargo desde 1993, apresentou um relatório no qual enfatizou os avanços da violência de gênero, discurso de ódio e desinformação, sobre a liberdade de expressão, revelando uma crescente supressão de espaços de fala, aumento da frequência de ataques violentos tanto online quanto fora das redes, além de censura de gênero e monitoramento político por parte dos Estados. Na sua visão o sexismo e a misoginia foram “intensificados pelo aumento de forças populistas, autoritárias e fundamentalistas em todo o mundo”,daí a importância da defesa da igualdade de gênero e a liberdade de expressão para a democracia.
Em 2021, além da epidemia da Covid, houve também uma espécie de “epidemia de golpes de estado”, cinco deles militares e um autogolpe “um recorde para o século 21”, que até então contava , em média, com 1,2 por ano. O relatório também ressalta um recorde de 35 países que sofreram deterioração significativa na liberdade de expressão.
Um aspecto relevante do relatório, considerando países como o Brasil que tem este ano uma eleição presidencial é o que ele chama de mudança na natureza dos regimes autocráticos (ou com pretensões a se tornar), que passam a depender (e estimular) a polarização e a desinformação. Segundo o relatório Digital 2021 Global Overview Report sobre o uso e adoção da mídia social o número de usuários da mídia social aumentou mais de 13%em 2020, com quase meio bilhão de novos usuários elevando o total global para quase 4,2 bilhões no início de 2021 e que em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários ingressaram nas redes sociais todos os dias durante 2020, o que equivale a cerca de 15½ novos usuários a cada segundo. E ao analisar a forma como a informação e especialmente desinformação chega aos usuários, destaca um aspecto importante em relação a América Latina e o Brasil em particular: A região tem um índice de desinformação superior a média global e quatro países se destacam em termos de desinformação: o Brasil, à frente de todos, seguido do Chile, Argentina e México. A questão relevante a ser respondida em relação à desinformação é: as iniciativas do Tribunal Superior Eleitoral – TSE – juntas as plataformas serão suficientes para impor limites e impedir ou limitar seu uso na eleição de outubro? A desinformação, manipulação, mentiras, fake news etc começou muito antes das eleições de outubro de 2018, continuou existindo e continua ativa e muito atuante, especialmente na extrema direita.
Outro relatório sobre democracia é do Instituto Freedom House (Estados Unidos) no qual constata índices similares ao do V-Dem, mostrando que desde 2018 houve uma queda acentuada dos índices de liberdade e democracia. Para medir o grau de democracia nos países, leva em conta vários critérios como a legitimidade dos governantes, a participação da sociedade nas definições de políticas públicas, a impessoalidade da administração pública, a garantia de direitos fundamentais e o funcionamento do sistema de freios e contrapesos.
A constatação é que houve um retrocesso na maioria dos países em relação a esses critérios e revela ainda que o Brasil, cuja democracia está em declínio desde 2016, foi o país que registrou o maior retrocesso democrático em 2020, ou seja, o país do mundo que mais perdeu atributos democráticos. No relatório do Instituto Freedom House o Brasil, numa escala de 0 a 100, em 2017 tinha 79 pontos, em caiu para 74 em 2020, evidenciando um retrocesso democrático no país.
Além do Brasil e a inclusão dos Estados Unidos pela primeira vez entre os países que registraram retrocesso democrático sob a presidência de Donald Trump, citando, entre outros aspectos, a “guinada histórica” dos questionamentos em relação aos resultados das eleições presidenciais de novembro de 2020 e “a redução das investigações do Congresso sobre a ação do presidente entre 2018 e 2020”, são citados, entre outros países, a Turquia, Índia, Filipinas, Polônia, Hungria e Eslovênia, Sérvia, Nicarágua, Mianmar, Afeganistão e Mali (os três últimos passaram de regimes híbridos para regimes autoritários) e em relação à África, além do Mali, o relatório se refere a “declínios recentes da democracia” com golpes militares no Chade, Guiné-Conacri e Sudão.
Segundo o relatório pelo quinto ano consecutivo, o número de países que se tornaram autoritários superou o de países em processos de democratização.
Sobre o Brasil mais especificamente cita o presidente Jair Bolsonaro como o responsável pelo retrocesso democrático e afirma que ele “testou abertamente as instituições democráticas”. A partir de 2019, com o início do governo e depois da pandemia que já causou a morte de mais de 660 mil pessoas, destaca a (má) gestão da pandemia (menosprezo pela crise sanitária), convocação e participação em atos antidemocráticos, ameaças às instituições como o Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral como as afirmações do presidente da República que não iria respeitar mais as decisões do Supremo Tribunal federal (STF), as hostilidades contra jornalistas, questionamentos quanto à lisura das eleições ameaçando antecipadamente de não reconhecer o resultado da eleição presidencial de 2022 caso não seja (re) eleito, sinalizando para os seus seguidores uma mobilização com os mesmos procedimentos que seguidores de Donald Trump provocaram nos EUA ao ser derrotado por Joe Biden (invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021) .
No artigo O declínio da democracia brasileira (O Estado de S.Paulo, 26 de novembro de 2021), Fernando Gabeira afirma que “Não há dúvida de que a maior ameaça à democracia no Brasil nasce com Bolsonaro e seus aliados” destacando na escalada autoritária o jogo de toma lá dá cá no Parlamento “do qual o chamado orçamento secreto é a principal expressão” e que ele usa de duas armas simultâneas para atacar o processo democrático: a decadência para defender suas pretensões autoritárias e, ao mesmo tempo, aprofunda o fisiologismo para se manter no governo.
Os dados disponibilizados pelos relatórios são preocupantes, e a questão é: será o colapso da democracia inevitável e irreversível ou depende da capacidade de resistência dos setores democráticos da sociedade? Se depender, também, da capacidade de articulação e organização dos que defendem a democracia, é de fundamental importância como desdobramento, a construção de uma Frente Ampla em Defesa da Democracia que congregue todos os que lutam contra o autoritarismo, o fascismo (ou neofascismo) em suas diversas manifestações. O problema é que os embates eleitorais, as vaidades e pretensões de candidatos que se posicionam contra o governo, em defesa da democracia e suas instituições, não conseguem articular essa frente – ampla, urgente e necessária – colocando em risco, não apenas à realização das eleições ou aceitação dos seus resultados – como à própria democracia e nesse sentido, todos serão vítimas e pior, de certa forma, contribuíram para o êxito desse processo.