Por Silvério Alves Filho
É difícil encontrar uma pessoa no Brasil que não tenha tomado conhecimento do episódio em que Sandra Fernandes, mulher de um personal trainer, o traiu com um homem em situação de rua, no seu próprio carro, no Distrito Federal.
Na ocasião, ao achar que a esposa estava sendo atacada, o marido bateu no homem que estava com ela. Posteriormente, em sede policial, a mulher afirmou que a relação extraconjugal foi consensual, ao passo que o marido informou que a mulher, provavelmente, estava com problemas psicológicos.
O fato inusitado rapidamente tomou conta das redes. Todos os veículos de comunicação noticiaram e, em busca do “engajamento”, a maioria com tons de piada em seus textos. Muitos riram, fizeram memes, piadas machistas contra a mulher e ofensas contra seu esposo, que teria sido conivente, sem personalidade, passivo.
Tudo isso, sem refletir o que as ofensas, comentários e repercussões causariam naquelas pessoas, naquela família, nos filhos do casal. A violência e a agressão viraram alegria nacional, com direito a entrevista com o homem em situação de rua, contado os detalhes da ato.
Neste mundo de informações e opiniões rápidas, quase ninguém parou para refletir: e se, de fato, ela tivesse problemas psiquiátricos? E se, de fato, o marido, em vez de passivo, estava apenas exercendo sua responsabilidade afetiva com a mulher em crise?
Posteriormente constatou-se o problema psiquiátrico, tendo o laudo médico apontado “transtorno afetivo bipolar em fase maníaca psicótica”. O relatório médico informou que a comerciante, desde que deu entrada no hospital, apresenta “alucinações auditivas, delírios grandiosos e de temática religiosa, hipertimia (alteração de humor), falso reconhecimento, comportamentos desorganizados e por vezes inadequados”.
Isso me fez lembrar de que, em meados do século XX, após a II Guerra Mundial, a filósofa alemã Hannah Arendt percebeu algo novo, a partir da experiência alemã; constatou que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer motivação maligna. O mal, portanto, não seria necessariamente produzido a partir de uma conduta consciente, mas poderia também sê-lo em razão de decisões políticas até bem intencionadas.
Embora não se trate aqui uma perspectiva burocrática como a Alemã, parece razoável compreender certa semelhança com atitudes virais cada vez mais comuns nas redes sociais, em que as pessoas agridem, ferem, caluniam, rindo, sem objetivo intencional de agredir.
No caso acima, segundo o laudo médico mencionado, a “piada nacional” se deu em face de uma mulher com vulnerabilidade psiquiátrica, sofrendo todo tipo de agressão nas redes sociais, sem que os agressores se dessem conta disso. O mal como algo banal.