A cultura religiosa é protegida pelo direito à felicidade. Enquanto a liberdade religiosa tem um caráter de escolha pessoal, a proteção e promoção dessa cultura surge como papel de um Estado laico comprometido com a sociedade que o forma. Pois, a religião representa um valor para o livre desenvolvimento humano, e deriva do direito à felicidade, que se relaciona mais com os meios concretos de existência digna do que com estados mentais circunstanciais de cada um.

Por Fabiano Mendonça*

O direito fundamental à felicidade não é o mesmo que um direito a ser ou estar feliz. Este é um estado da alma, enquanto que aquele é a existência de uma proteção do Poder Público a um querer humano. E eu não posso desejar que controlem meus humores, seja para que estado de espírito for. Nisso reside a liberdade.

A Felicidade pode ser cientificamente entendida como um largo campo para o qual convergem preocupações de diversas ciências. Pois, ao mesmo tempo em que o íntimo de como sou possa ser inalcançável, não é menos certo que deve ser protegido e que a busca desse bem estar é a razão maior que move as mais diversas ciências na descoberta de medicamentos, no conhecimento geológico, no estudo da força gravitacional e assim por diante. Tudo tem o desejo de atender a elevados propósitos humanos. E quando algum conhecimento é feito com o desejo de eliminar a vida humana, produzir tragédias ou disseminar o medo ele é criticado e deplorado.

Por isso, a Felicidade, enquanto designação de um espaço da ciência, é uma convergência de diversos saberes que se comunicam multidisciplinarmente para melhor alcançar seus resultados. O Direito participa nesse processo ao buscar pacificação social. Daí, ao se constatar que a raiz do Direito brota da semente que pode ser denominada “vida digna”, é natural ver que suas primeiras folhas são a saúde e a felicidade, que são as traduções jurídicas do dado biológico “vida” e do dado moral “dignidade”, respectivamente.

E, enquanto direito, a felicidade é a proteção fundamental ao livre desenvolvimento do indivíduo, seja mediante a garantia do exercício de sua liberdade, seja pela promoção de meios para que o ser humano possa existir cada vez mais profundamente. É preciso que todos possam manifestar na comunidade todas as suas habilidades, capacidades e potencial.

Nesse campo que une liberdade, desenvolvimento, essência e vida digna, um elemento de grande importância é o religioso. O ser humano reflete sobre ele desde quando se deparou com o sofrimento e a necessidade de alcançar explicações para toda a imensidão intocável que reside em sua alma. Como se relacionar com a verdade? Como buscá-la ou aceitá-la? Até hoje, a religião é a oferta de um conjunto sistemático de saberes que fornecem explicações para as realidades intangíveis que nos circundam. E toda a evolução do pensamento teológico dialoga de maneira rica e indispensável com o uso da razão que fazemos de maneira una e incindível. A fé é o motivo maior da busca pelo saber, que almeja alcançar o inexplicado enquanto gera o amor pela verdade. Assim podemos entender nas lições da Fides et Ratio (João Paulo II).

A proteção da liberdade religiosa assume então, dentro desse contexto do direito à felicidade, uma característica de decorrência necessária. Ela deve ser exercida com responsabilidade, respeito ao próximo e protegida de coações (Declaração Dignitatis Humanae). Mas um ponto importante exige uma visão mais ampla: é ínsita à religião a faculdade de sua prática pública. E isso porque ela é, antes de tudo, uma manifestação cultural. É importante distinguir estes dois aspectos: o direito à liberdade religiosa e o direito à cultura religiosa.

Quando eu exerço minha “liberdade natural” de pensar, posso escolher um sistema religioso. E isso não pode ser controlado. Quando exerço o “direito à liberdade” invoco a proteção estatal para poder pôr em prática os preceitos inerentes a esse sistema. E quando essas práticas se consolidam num conjunto de desejos para o futuro, num modo de vida e em convicções morais, tenho a cultura. Mas no momento em que escolho uma religião ou até lanço os fundamentos de uma nova, que sejam inexistentes no meio em que vivo, não estou a ingressar em uma cultura já manifestada no local.

Ainda que essa cultura ingressante no meio deva também ser protegida pelos motivos já falados acima, ela ainda não integra o rol de culturas religiosas existentes e já protegidas em um Estado. Isso vai ajudar a entender a relação do Estado com a religião e mostra a diferença entre a liberdade religiosa e a proteção à cultura religiosa.

A Constituição protege no art. 5º, VI a VIII, a liberdade religiosa, e proíbe o Brasil de ter, financiar ou prejudicar uma religião, nem ser aliado ou dependente dela (19, I). Porém, ao proteger o direito à cultura (art. 215), mostra que o Estado laico brasileiro é compromissado com a proteção das formas, práticas, ritos e festas religiosas. Não seguimos a concepção de laicidade crítica da religiosidade popular ou indiferente a sua existência. E seria violador da laicidade a própria concepção de um Estado ateu, pois implicaria em adotar uma visão sobre a relação com o que está para além do natural.

Num país com uma base jurídica fundada em princípios monoteístas, com grande influência de religiões de matriz africana e aberto à pluralidade de diálogos interreligiosos, vê-se que o direito à cultura religiosa exige proteção de datas, símbolos, festas, vestimentas e outros atos públicos de exercício da fé. No Supremo Tribunal Federal, aguarda julgamento o Tema 1086 sobre símbolos em espaços públicos. Esse Tribunal também já aceitou as práticas religiosas como motivo para alteração na realização de concursos públicos e distinguiu de maus tratos o sacrifício ritual de animais. Além desses, muitos outros temas referem-se a temas religiosos de maneira mais ou menos polêmica. O importante é ver que, na verdade, a proteção que se dá nesses casos é à manifestação cultural religiosa, que quando regular não deve ser combatida ou destruída pelo Estado, mas antes, ele deve fornecer meios equitativos de promoção, desde que não caracterize favorecimento a um determinado grupo em detrimento dos demais.

É válido recordar que não há como garantir a alguém um estado interior de Paz ou interferir diretamente nisso. O estar bem é uma circunstância dentro de um contexto mais complexo e admite oscilações sem que a pessoa deixe de gozar de um estado mais profundo de conexão consigo e com o que a transcende. Por isso, felicidade não é estar feliz; religião não é estar em Paz. Mas sem a proteção àquelas, estas não existiriam.

*Fabiano Mendonça, professor Titular de Direito Constitucional da UFRN. Procurador Federal.
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