Uma importante iniciativa de combate a tortura no país foi à aprovação da Lei nº 12.847, sancionada no dia 2 de agosto de 2013, criando o Sistema Nacional de Prevenção e Combate a Tortura. Nesse sentido, o Brasil cumpriu a obrigação assumida no Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU.

Como parte de sua estrutura, foi criado um Comitê composto por 23 (vinte e três) membros, sendo 11 (onze) representantes de órgãos do Poder Executivo Federal e 12 (doze) de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil.

Os onze peritos devem escolhidos pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – criado em 2015 como uma espécie de seu “braço executivo” – e tem por objetivo fiscalizar unidades públicas onde haja privação de liberdade (cadeias, hospitais de internação compulsória etc.,) realizando diagnósticos e fazendo, através de relatórios, recomendações aos órgãos competentes.

Seus integrantes devem ser pessoas com notório conhecimento e atuação e experiência na área de prevenção e combate à tortura, para mandato fixo de três anos, permitido uma recondução. E segundo a lei, deverão ser independentes, com livre acesso às instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, instituições socioeducativa ou centro militar de detenção disciplinar. Em caso de constatação de violações dos direitos humanos, como práticas de torturas e de outros tratamentos e práticas cruéis, desumanas ou degradantes, podem requerer à autoridade competente que instaure procedimento criminal e administrativo.

Ele é um dos 15 órgãos colegiados que, ao ser criado, integrava o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que deveria dar autonomia para escolher os locais de visitas e de elaborar seus relatórios. O artigo. 5º da lei que o criou estabelece que “são assegurados ao MNPCT e aos seus membros a autonomia das posições e opiniões adotadas no exercício de suas funções; o acesso independentemente de autorização a todas as informações e registros relativos ao número, à identidade, às condições de detenção e ao tratamento conferido as pessoas privadas de liberdade; o acesso ao número de unidades de detenção ou execução de pena privativa de liberdade e a respectiva lotação e localização de cada uma”.

E compete (artigo 4º): planejar, realizar e monitorar visitas periódicas e regulares a pessoas privadas de liberdade em todas as unidades da Federação, para verificar as condições de fato e de direito a que se encontram submetidas; articular-se com o Subcomitê de Prevenção da Organização das Nações Unidas – ONU.

No entanto, no dia 11 de junho de 2019, pouco mais de seis meses do início do governo, foi assinado um decreto presidencial (nº 9.831/2019) que exonerou os 11 peritos e mudou o órgão para o ministério da Economia e ainda determinou que a participação no órgão fosse considerada “prestação de serviço público relevante, não remunerado”. E mais: além de não receber salário, os voluntários não podem ter vínculos com “redes e a entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa, a entidades representativas de trabalhadores, a estudantes e a empresários integrantes do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Extingue ainda a exigência de critérios de raça, etnia, gênero e religião para composição do Comitê.

No mesmo dia, foi publicada uma nota do MNCPT na qual afirma que o decreto acaba com a autonomia e as condições de funcionamento do órgão e que o governo agia “em nítida retaliação à atuação desses órgãos que, incansavelmente, vêm denunciando práticas sistemáticas de torturas nos locais de privação liberdade em todo Brasil, e cita, entre outros, os relatórios referentes aos Massacres no Sistema Prisional do Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas e “da atuação irregular no Ceará da Força Tarefa de Intervenção Federal do Ministério da Justiça”.

No dia 19 de junho de 2021, A ONG Human Rights Watch, também publicou uma nota em relação ao decreto, afirmando que “vê com grande preocupação o decreto (…)que elimina a remuneração para os peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e exonera seus atuais integrantes, dentre outras disposições. Na prática, o decreto não só enfraquece como pode inviabilizar a atuação do Mecanismo, pois dependerá da atuação de voluntários que, além disso, não poderão ter vinculação com organizações da sociedade civil e acadêmicas que atuam na área do combate à tortura e participam no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O decreto também eliminou a exigência de que a seleção dos peritos busque representar a diversidade de raça e etnia, de gênero e de região do Brasil”. https://www.hrw.org/pt/news/2019/06/11/331020

Dois meses depois, em agosto de 2019, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, questionou decreto quanto ao remanejamento de cargos do MNPCT para uma secretaria do Ministério da Economia, a exoneração de peritos e a retirada da remuneração prevista para o trabalho, transformando a atuação no órgão em “prestação de serviço público relevante, não remunerado”. Argumentando que feria princípios fundamentais como o da dignidade humana, da vedação à tortura e da legalidade, destacou que a manutenção dos cargos ocupados pelos peritos é “essencial ao funcionamento profissional, estável e imparcial do órgão que, por sua vez, é indispensável ao combate à tortura e demais tratamentos degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas”. Ferem também os princípios da legalidade e da separação de poderes, todos previstos na Constituição Federal.
Depois, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma Ação Civil Pública na 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro e no dia 9 de agosto de 2019 o decreto foi suspenso e conseguiu a reintegração (com remuneração) dos peritos aos cargos. O juiz federal Osair Victor de p Oliveira Junior, afirmou em sua decisão que “não é difícil concluir a ilegalidade patente do Decreto (…) uma vez que a destituição dos peritos só poderia se dar nos casos de condenação penal transitada em julgado, ou de processo disciplinar, em conformidade com as Leis nos 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e 8.429, de 2 de junho de 1992, o que já legitima o pedido de reintegração dos peritos nos cargos antes ocupados, até que o mandato respectivo se encerre pelo decurso do tempo remanescente”. http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/decisao-mecanismo-nacional-combate-tortura

A Procuradoria Geral da República, PGR também entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com a ação para suspender o decreto totalmente.

Em novembro de 2021 uma frente constituída por 250 entidades da sociedade civil publicaram uma Carta Aberta na qual denunciavam que o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura estava inativo desde 8 de outubro de 2021 quando o mandato referente ao biênio 2019/2021 tinha terminado e os novos membros eleitos até aquela data ainda não haviam sido empossados e destaca, entre outros aspectos, a falta de compromisso do Executivo Federal com o tema “retirando-se da sociedade civil sua fundamental participação nas políticas de prevenção e combate à tortura no país”. Salienta também que não foram completadas as 12 vagas pertencentes à sociedade civil no Comitê, conforme determina a lei. As entidades também notificaram o Subcomitê de Prevenção à Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação do CNPCT.

Em janeiro de 2021, a PGR sob a gestão do procurador-geral Augusto Aras, mudou de posicionamento, passando a recomendar a rejeição da ação de inconstitucionalidade, argumentando que parte do decreto já tinha sido alterada, o que tornaria o processo inválido, e que haveria outros meios jurídicos para questionar a suposta ofensa a direitos fundamentais, e ainda que a decisão anterior não havia detalhado, artigo a artigo, as inconstitucionalidades apontadas no decreto do governo.

Mesmo com o pedido de rejeição a ação foi levada adiante e o decreto está sendo julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) desde o dia 18 de março de 2022 e até o dia 25, foi formada a maioria, sete dos onze ministros, pela inconstitucionalidade do decreto. Além do relator, Dias Toffoli, votaram contra o decreto, os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.

Em seu voto, o relator destacou, entre outros aspectos, que a revogação a que se refere à PGR se deu no contexto de sucessivas restruturações administrativas no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sem que tenha havido o retorno dos onze cargos em comissão para a pasta e a sua destinação aos peritos do MNPCT. Afirma ainda que a ausência de salário, na prática transforma o trabalho dos peritos em trabalho voluntário e assim “desestimula a entrada de profissionais especializados no órgão, fragilizando o combate à tortura no país”.

Para ele, “O exercício da função de perito do MNPCT em caráter voluntário teria uma única consequência: o afastamento de profissionais qualificados e dispostos a comprometerem-se com o trabalho de fiscalização e, consequentemente, a impossibilidade de execução das competências legais do órgão. É dizer: como poderá o Estado exigir de profissionais qualificados e especializados tamanha responsabilidade e risco sem remunerá-los para tanto?”.
Destacou também o fato de que devem ser respeitados os compromissos do Brasil para acabar com a tortura “que ainda continua ocorrendo nos presídios do país”. Para o ministro, o decreto “tem o condão de fragilizar o combate à tortura no país”, além de violar frontalmente a Constituição e esvaziar políticas públicas previstas em lei.
A compreensão foi a de que mudanças na legislação teriam que ser feitas apenas pelo Congresso Nacional, e não por decreto presidencial, para que sejam estabelecidas em lei as condições necessárias para o exercício das competências do MNPCT “com a segurança jurídica e independência com que se comprometeu o Estado brasileiro a garantir”. E não, como ocorre com o decreto, à violação à separação dos poderes e “abuso de poder regulamentar”.

Assim, segundo o relator “a violação se mostra especialmente grave, diante do potencial desmonte de órgão cuja competência é a prevenção e o combate à tortura”. E que “Não é dado ao Chefe do Poder Executivo, sob o pretexto de exercer função meramente regulamentar, desmontar política pública instituída no intuito de dar cumprimento ao texto constitucional e prevista em compromisso internacional assumido pelo Brasil”.

O ministro também se posicionou contra o remanejamento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para o Ministério da Economia e afirmou que “Manter um adequado quadro de peritos do MNPCT, todos ocupantes de cargos em comissão e devidamente remunerados, significa equipar adequadamente órgão e, em última análise, a Administração Pública Federal, com agentes públicos capazes de levar à cabo a finalidade última de prevenir e combater a tortura no Brasil. Não se trata de uma escolha das autoridades que ocupam, em caráter eventual, os mais altos cargos da República, mas sim, de uma política de Estado, que transcende ideologias e visões de mundo, pois retira diretamente da Constituição Federal o fundamento de sua existência”.

Como ele destacou, a aprovação do decreto descumpre obrigações assumidas pelo país perante órgãos internacionais, lembrando que organismos internacionais, entidades da sociedade civil, associações representantes de carreiras jurídicas e órgãos públicos manifestaram ‘rechaço em uníssimo’ ao decreto, entre elas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O fato é que desde o início do governo em 2019, tem havido o enfraquecimento das atividades dos órgãos colegiados voltados para a proteção de minorias e monitoramento de violações de direitos humanos, como é o caso, alterando a sua composição, retirando recursos etc. Nesse sentido, é louvável a decisão do STF em barrar o decreto que, por ter como efeito prático o esvaziamento do MNPCT, e também é uma contrariedade à separação entre os poderes, pois “acaba por condenar à absoluta ineficácia uma política pública prevista em lei”.

A defesa de torturadores (e da tortura), que continuam existindo, se expressa, também, no enaltecimento de notórios torturadores e se explica pela impunidade em relação aos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar (1964-85). Houve uma anistia (e auto-anistia) em 1979, sem punições a quem praticou torturas e tampouco a aceitação ou o reconhecimento de ter se cometido qualquer tipo de erros ou crimes. Em vez disso, se estimulam o ódio e o ressentimento. É disso que se alimentam os sentimentos e movimentos em defesa da ditadura e da tortura. Daí a importância, em um governo democrático, de criminalizar a apologia da tortura, como se criminaliza a homofobia e o racismo.

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