Por Vitor Cesar Amorim Costa

As eleições deste ano são atípicas. Em primeiro lugar, pela estratégia bonapartista de Bolsonaro, o qual objetiva tumultuar o processo eleitoral com ameaças golpistas, em uma frente, e ganhar as eleições no aperto, noutra. Em ambas ele conta com amplos setores militares ao seu lado, embora não a ponto de chancelarem um golpe militar. A ideia parece ser ganhar a eleição criando fatos, já que desta vez não há facada, ainda, a ponto de lhe dar votos de solidariedade. Nada novo debaixo do sol. É assim que ele tem governado desde 2018.

Em segundo, e talvez mais importante, por causa de algo que nos corredores de Brasília é nomeado como “semipresidencialismo implantado” 1. Desde os governos de Dilma Rousseff, passando pelo ilegítimo governo Michel Temer até chegar a Jair Bolsonaro, a Presidência da República, de hiper-autoritária, segundo alguns2, passou a ser um poder cada vez mais enfraquecido. Ainda no governo Rousseff foram aprovadas as “emendas impositivas”, as quais institucionalizaram o acesso dos parlamentares a emendas, “puxadinhos” orçamentários da União que servem para que estes mesmos parlamentares irriguem seus “currais” eleitorais.

O governo Bolsonaro, sem base parlamentar significativa até recentemente e, portanto, refém da Câmara dos Deputados e de sua grande arma contra o Executivo, o instituto do impeachment, acabou por abrir um novo capítulo: o chamado “orçamento secreto”. Se de início já é absurda a ideia de um orçamento “público” que seja “secreto”, a realidade aponta a sua funcionalidade: a compra de votos e apoio parlamentar, secretamente. A farra é tal que esse orçamento já chega a 35,5 bilhões. A título de comparação, o orçamento discricionário do Executivo nacional para este ano está na casa dos 44 bilhões. Pelo andar da carruagem, é provável que nos próximos anos o “orçamento secreto” infle a ponto de passar o do executivo. Portanto, é necessário ressaltar o ineditismo desse acontecimento, o qual indica uma correlação de forças entre os poderes que não foi inscrita na Constituição de 1988, seja por bem ou por mal, afinal, somos uma República Presidencialista. A verdade é que a realidade institucional mudou, mas a constituição não.

A ideia do chamado “centrão”, um bloco heterogêneo surgido no final da ditatura justamente para barrar o progressismo na formulação e aprovação da Constituição de 1988, é justamente institucionalizar a proposta por meio da aprovação do chamado do chamado “semipresidencialismo”. É certo que tal proposta, sem plebiscito referendando a mudança, se constitui em golpe. Contudo, o debate já envolve apoio de figuras como Luis Roberto Barroso, Michel Temer e Gilmar Mendes. Aliás, é bom lembramos que a motivação de Temer ao se movimentar para depor Dilma era e sempre foi a mudança de regime de governo 3. A ideia é que a proposta, caso seja aprovada, passe a valer em 2030.

Todavia, o presente já traz problemas graves dessas transformações, antes mesmo de institucionalizadas. Esses problemas vinham tomando os noticiários até pouco tempo, antes de Bolsonaro abafar com seus fatos criados, como o indulto a Daniel Silveira (PTB-RJ), seus embates com o Supremo Tribunal Federal (STF) e, em seguida, com a mentirosa afirmação de existência de fraudes no sistema eleitoral em sua saga contra o Superior Tribunal Eleitoral (TSE).

A começar pelo esquema “informal” de obtenção de verbas no Ministério da Educação (MEC) envolvendo dois pastores sem cargo público até chegar às verbas de Arthur Lira (PP-AL), as quais destinaram R$ 26 milhões de “kit-robótica” do MEC a sete cidades alagoanas, mesmo sem terem infraestrutura básica, faltando salas de aula, internet, computadores e até água encanada, essas são amostras problemáticas e criminosas dos efeitos do chamado “orçamento secreto”.

Tão grave quanto é o que ocorre com o Fundo Nacional de Educação (FNDE), através do qual o executivo nacional prometeu construir 2.000 novas escolas nos “currais” eleitorais de deputados governistas e “fiéis” a Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados. Ocorre que o fundo acima mencionado não possui orçamento suficiente para a execução de tal proposta. Mais grave ainda é o fato de existirem 3.500 escolas em construção, atualmente paradas 4. Essa inversão de prioridades e a ausência de orçamento real para tal evidencia a criação de obras “fantasmas”, num fragrante estelionato eleitoral, pois a ideia é que tais parlamentares utilizem essas escolas como “fatos”, como se estivessem prontas, como feitos políticos em ano eleitoral. No final de tudo, teremos não mais 3.500 escolas em construção, inacabadas, mas 5.500.

Nesta semana surgiram os casos dos caminhões compactadores de lixo, comprados por meio das emendas “secretas” e destinados a municípios, tudo sem planejamento, avaliação e alinhamento com a política de saneamento básico. Caminhões de lixo são entregues a cidades sem perspectiva de construção e adequação de aterros sanitários. Não há exigência de qualquer contrapartida dos municípios em termos de planejamento público, apenas troca de apoio entre políticos em ano eleitoral. Também neste caso há denúncias de superfaturamento na compra dos veículos.5 Para muito além de casos isolados, este modelo de (des)financiamento das políticas públicas tem se estendido país adentro, tornando-se um padrão neste ano eleitoral e apontando no horizonte como uma nova realidade da política nacional.

No último dia nove, o Congresso Nacional enviou um conjunto de informações ao STF sobre as emendas “RP9”, núcleo duro do orçamento secreto. Os dados faziam referência a cerca de 68% do total de 594 no Congresso. Ocorre que além de incompleta, a documentação inclui nomes de parlamentares que afirmam não terem tido qualquer envolvimento no requerimento, distribuição e empenho dos recursos. As informações foram recolhidas a partir de cada deputado e juntadas, sem qualquer padronização prévia. Pacheco (PSD-MG) decidiu enviar as informações ao STF da forma como havia recebido, uma vez que não há previsão de uma organização qualificada das informações. Foram raros os casos em que houve uma transparência qualificada por parte dos parlamentares. 6 É certo dizer que a as castas altas do Congresso, especialmente a ala governista da Câmara dos Deputados, controlaram a maior parte dos recursos desse tipo. 7

Embora “orçamento secreto” pareça um oximoro, ele evidencia um alinhamento verdadeiro conquanto inédito na Nova República: a marginalização das fontes ordinárias de financiamento, “fundo a fundo”, ou seja, a ruptura violenta do pacto federativo. Ao financiar obras e bens a partir de “emendas secretas” ou no mínimo sem transparência qualificada, sem qualquer análise técnica, planejamento da execução e exigência de contrapartidas estaduais e municipais, temos o desmonte das políticas públicas custosamente conquistadas pelas forças populares em 1988. Tudo isso em prol da manutenção de cargos eletivos no parlamento, especialmente na Câmara dos Deputados, o que sempre expressou a fraqueza dos partidos políticos no país. É palpável o coronelismo e o patrimonialismo que andam tomando de assalto o Brasil e, mais gravemente, o nordeste, que tanto necessita das políticas públicas setoriais: educação, saúde, assistência social, habitação, saneamento e etc. Se é verdade que isso sempre existiu, é necessário apontarmos a piora do quadro no período recente e a deterioração do financiamento das políticas públicas num nível e forma até então inéditos. Essa situação atual é resultado de uma presidência enfraquecida e que para angariar maiorias em votações de interesse e alavancar a reeleição demanda viabilidade eleitoral, esta última conquistada através do “orçamento secreto” como instrumento de barganha.

Os problemas dessa nova realidade institucional, que se quer “semipresidencialista”, evidencia que as eleições são apenas uma batalha. Enquanto um grupo que quer manter seu poder, a estratégia do assim chamado “centrão” é chegar em 2023 com mandatos renovados, prontos para exigir mais. Exatamente por isso, erra quem acredita que a batalha mais importante se dará no executivo federal. A manutenção desse arranjo institucional, com ou sem Bolsonaro, é mais uma sangria contra a Carta de 1988 e suas garantias cidadãs. Esta é a razão de vermos as eleições deste ano como históricas em sua plenitude, tanto no executivo quanto no legislativo.

  • Victor Cesar Amorim Costa é graduado em Psicologia. Especialista em Política de Assistência Social – SUAS pela PUC-Minas. Mestre e doutorando em Psicologia pela UFRN. Estuda políticas sociais no capitalismo contemporâneo. É membro do Grupo de Pesquisa Marxismo & Educação (GPM&E) e do Grupo de Trabalho em Políticas Públicas.

1 Silva, F. B; Bilenky, T e Costa, A. C. (2022). #193: Pastores no MEC e as eleições. Revista Piauí/Foro de Teresina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gG9amNygwMY&t=1396s. Acesso em 09/05/2022.

2 Boito Jr., A. (2018). Reforma e Crise Política no Brasil: os Conflitos de Classe nos Governos do PT. Campinas. São Paulo: Unicamp. Unesp.

3 Singer, A. (2018). O Lulismo em Crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Boitempo.

4 Pires, B.; Shalders, A. e Affonso, J. (2022). Governo abandona obras paradas e monta um esquema de ‘escolas fake’. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-abandona-obras-paradas-e-monta-um-esquema-de-escolas-fake,70004034314. Acesso em 09/05/2022.

5 Shalders, A.; Affonso, J & Valfré, V. (2022) Compra de caminhões de lixo dispara e preços inflados somam R$ 109 milhões. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/dinheiro-publico-banca-centenas-de-caminhoes-de-lixo-com-precos-inflados/. Acesso em: 24/05/2022.

6 Machado, R. & Marques, J. (2022). Congresso envia ao STF dados de 404 parlamentares sobre emendas de relator. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/05/congresso-envia-ao-stf-dados-de-404-parlamentares-ligados-a-emendas-de-relator.shtml. Acesso em: 18/05/2022.

7 Souza, A.; Zarur, C; Dantas, D.; Gonçalves, E.; Lindner, J.; Soares, J.; Ferreira, P. & Mello, B. (2022). Documentos entregues ao STF mostram mapa do orçamento secreto. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/documentos-entregues-ao-stf-mostram-mapa-do-orcamento-secreto-1-25506172?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo. Acesso em : 18/05/2022.

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